"Mas ele foi ferido pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades. O castigo que nos traz a paz estava sobre ele e pelas suas pisaduras fomos sarados".
Esse trecho do capítulo 53 do livro do profeta Isaías abre o que talvez seja um dos filmes mais polêmicos dos últimos tempos, idealizado, dirigido, escrito e bancado (sim, saiu do bolso dele a maior parte do dinheiro) por ninguém menos que
Mel Gibson.
O filme polemizou, foi acusado de anti-semita, violento desnecessariamente, manipulador.
De fato, a realidade de Cristo mostrada por Gibson na tela é totalmente diferente do Jesus que vemos na semana santa nos filmes da televisão aberta.
Aqui, o negócio é violento, sanguinário, cru. Mas não creio que seja violência gratuita. Creio que seja o esforço máximo para representar o texto que abre o filme. Vamos, releia de novo o versículo 5 de Isaías 53 que citei acima. "Ferido", "moído", "castigo", "pisaduras". Pelos adjetivos usados no texto milenar, podemos concluir que o sacrifício não foram aquelas chicotadelas que vemos nos filmes antigos, que a cada vez que o chicote pega nas costas do Cristo, suja-o um pouquinho de tinta vermelha. O texto usa o termo "moído". O que é
moer? Certamente, Gibson tenta reproduzir isso na tela. E o impacto físico-emocional é grande.
Mas não é só de "moídas" que sustenta-se o filme do diretor de Coração Valente. Com o objetivo de narrar as últimas 12 horas de vida de Jesus de Nazaré, Gibson inicia o filme com um Jesus (
Jim Caviezel, milagrosamente perfeito) agonizante, clamando sozinho no Monte das Oliveiras, quase que suando sangue. A fotografia suja, cheia de neblinas, ajuda a mergulhar o telespectador no universo que nos é tão comum mas que é revisitado e recriado de maneira única por Mel. Não é possível que o mais ateu dos homens não sofra em parte com a agonia do protagonista.
Somos apresentados então aos coadjuvantes, todos falando aramaico (quando se trata dos personagens judeus) e latim (quando se trata dos personagens romanos), dando uma realidade absurda ao filme, por mais que debata-se sobre a veracidade dos fatos narrados ali.
Jim está perfeito no papel de Cristo. Interessante como um homem interpretando ninguém menos que o filho de Deus e ainda por cima numa língua morta consegue sair-se tão bem. As falas dos personagens (em sua maioria retiradas da própria Bíblia, fielmente aos Evangelhos) são bem interpretadas, com todo o peso que deveriam ter. O filme em si segue muito as Escrituras, e por mais que você ache que existem personagens ali sem a "profundeza" adequada, acredite, eles não estão ali sem motivo: eles também estão na "fonte".
Um personagem que gostei bastante foi o Judas de
Luca Lionello. Ele é exatamente como eu sempre imaginei que Judas seria (ou melhor, estaria naquele momento): um homem pertubado, indeciso, nervoso. Como um homem impulsionado a cometer a maior das traições, mas ainda assim indeciso. A indecisão é tamanha que logo após ver o que fez, suicida-se. Lionello cria um Judas assim. É interessante ver como é a construção do personagem, a jornada dele desde a traição ao suicídio. Outro personagem interessante - no sentido cinematográfico - é Satanás, interpretado pela atriz e modelo italiana
Rosalinda Celentano, de forma assustadoramente forte, peçonhenta, perspicaz. O modo como o personagem tenta a Cristo no Monte das Oliveiras, o modo como tenta mostrar a Jesus que a humanidade não merece tamanha "paixão" é muito bem trabalhado.
Ainda há Maria – mãe de Jesus (
Maia Mogenstern) e Madalena (
Monica Bellucci), duas personagens interessantes (embora muita gente ache que estavam ali sem propósito) que demonstram de certa forma o sofrimento dos que andavam com ele. Maria era a mãe do condenado (a intimidade dos dois é mostrada em um flashback simpático e bonito, talvez a única cena que nos faça esboçar um sorriso no rosto) e Madalena foi salva por ele (como é mostrado em outro flashback), mostrando que ambas não estão tão sem objetivo na história cinematograficamente falando, já que na Bíblia elas também estão presentes.
Aliás, os flashbacks são pontos bastante interessantes do filme. Eles mostram um paralelo entre o Jesus ali desfigurado e outro Jesus, o mestre, o filho, o milagroso. É interessante ver as comparações e diferenças na fotografia que realçam os diversos momentos na vida do Cristo.
E entre flashbacks, slow motions e música super bem composta (arrebatadora!), Gibson consegue emocionar. Arrancar lágrimas. Matar, como aconteceram casos na época em que o filme estava em cartaz. Enfartos causados por emoções prolongadas. O filme é assim.
Entre fatos históricos, fatos bíblicos, cenas cruas e representativas (como a serpente sendo esmagada por Jesus), Gibson cumpre seu objetivo muito bem, realizando pra mim o melhor filme sobre Cristo feito até os dias de hoje.
Não creio que ele seja anti-semita, violento por natureza (nada comparado a Tarantino, por exemplo) ou manipulador (na tentativa de comover as pessoas). Creio que ele seja a mais bela tentativa de retratar o mais belo dos sacrifícios feito pelo mais belo e importante ser que já existiu.
A Paixão de Cristo é um filme arrebatador. Gibson nos pega pelo braço e nos larga em Jerusalém, com o coração batendo forte, sofrendo a cada chicotada, fechando os olhos pra não ver o sofrimento. E o mais interessante de tudo, é que no fim, terminamos sem conhecer a tal 'Paixão' do título. Ela é
inexplicável...
NOTA MECÂNICA: 10.0